No entender do STJ, se o casal opta pelo regime da separação de bens, não deve o legislador, posteriormente, elevar o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro
Em regra, toda pessoa civilmente capaz possui a liberdade de conduzir a própria vida e fazer escolhas, inclusive em relação ao regime de bens no casamento. As regras próprias a cada regime previsto no Código Civil – comunhão parcial (regime legal), separação de bens, comunhão universal ou participação final nos aquestos – conduzirão toda a relação patrimonial dos cônjuges durante a vigência do casamento, determinando ainda a forma da partilha de bens num eventual divórcio.
No caso do regime de separação de bens, a lei congrega duas espécies: a separação legal e a separação convencional. A primeira decorre de imposição da lei, em determinadas hipóteses (maiores de 60 anos, por exemplo), e a outra da vontade das partes, a ser formalizada através de um pacto antenupcial, lavrado em Cartório de Notas antes do casamento.
No regime da separação convencional de bens, os cônjuges desejam que os bens adquiridos na constância do casamento, por um ou por outro, sejam exclusivos de quem os comprou, não havendo um patrimônio que seja comum (a menos que tenha sido adquirido por ambos em expressa cotitularidade). Além disso, na separação de bens, as dívidas contraídas por um ou outro também não se comunicam e cada cônjuge tem poderes para administrar isoladamente seu patrimônio, sem a necessária anuência do outro.
Entretanto, a separação de bens eleita voluntariamente pelos cônjuges, que vigorará durante todo o casamento, não se estenderá necessariamente para após-morte. A redação do art. 1829, inciso I, do Código Civil de 2002 induz ao entendimento de que o legislador quis aquinhoar com uma parcela de patrimônio o cônjuge sobrevivente, casado pelo regime da separação convencional.
Portanto, apesar de o casamento ter sido contraído, por vontade das partes, pelo regime da mais absoluta separação de bens, na sistemática atual do Código Civil o cônjuge sobrevivente poderá se tornar herdeiro do falecido, concorrendo com seus eventuais descendentes, a fim de receber uma quota da herança, ou seja, dos bens que eram incomunicáveis. E, caso o falecido não tenha deixado descendentes ou ascendentes, o cônjuge receberá a totalidade da herança.
No regime da comunhão parcial – em que são comunicáveis entre os cônjuges os bens adquiridos onerosamente durante o casamento –, o cônjuge sobrevivente receberá sua meação, ou seja, a metade do patrimônio comum, mas também poderá se tornar herdeiro do falecido em relação aos bens particulares (havidos antes do casamento ou por doação/sucessão), concorrendo com seus eventuais descendentes.
Nova jurisprudência
Essas alterações trazidas pelo Código Civil de 2002, – especialmente em relação à repercussão sucessória no regime da separação convencional de bens –, foram alvo de inúmeras críticas e provocaram a lavratura de escrituras de testamento nas quais o autor pode reduzir significativamente o impacto da atribuição da herança ao cônjuge sobrevivente (o que ainda se recomenda).
Os primeiros casos a respeito da matéria chegaram há pouco ao Superior Tribunal de Justiça. Em dois julgados publicados em fevereiro de 2010 (RESPs 992749/MS e 1111095/RJ), o art. 1.829, inciso I, do Código Civil foi analisado dentro de um contexto jurídico mais amplo, interpretado em harmonia com outros que tratam da dignidade da pessoa humana, da livre manifestação da vontade humana, autonomia da vontade privada, boa fé e eticidade.
Entendeu-se que, assim como o cônjuge casado pela separação convencional de bens não possui direito à meação, tampouco na concorrência sucessória fará jus aos bens, tendo em vista que o regime eleito nas núpcias obriga o casal na vida e também na morte. Portanto, se o casal firmou pacto no sentido de não ter patrimônio comum, não deve o legislador posteriormente elevar o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro, sob pena de violar o próprio regime de bens eleito.
Estes são os primeiros casos sobre a matéria, julgados pela mais alta STJ. Resta saber se a jurisprudência realmente se consolidará nesse sentido.