Norteado pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o direito de família relativiza modelos tradicionais e a prevalência absoluta de laços sanguíneos
O direito de família contemporâneo tem dado muita importância ao afeto. Mas o que esse sentimento significa? Na sua ampla concepção, o afeto é ter ternura por uma pessoa; uma afinidade, uma ligação espiritual em relação a alguém; a energia de uma emoção de amor; a demonstração de dedicação, estima pelo outro, apego, carinho.
A questão fica mais relevante quando esse sentimento envolve crianças. A guarda de filhos, por exemplo. O princípio orientador das decisões nos tribunais, atualmente, é o de preservar o melhor interesse da criança, que há de ser criada no ambiente que melhor assegure o seu bem-estar, tanto físico quanto espiritual, seja com a mãe, com o pai, seja até com terceiro. Isso não significa, necessariamente, quem tem melhores condições financeiras.
Após a realização de estudo psicosocial em processos que discutem guarda, o julgador avalia, em primeiro lugar, as condições de vida da criança. Não raro, caso ela tenha convivido, desde pequena, por exemplo, sob a guarda do pai e cuidados da avó paterna, decide-se pela conservação da situação, caso a disputa tenha sido travada pela mãe.
Na questão de filiação, o afeto tem sido, da mesma forma, muito difundido. A grande inovação já veio na promulgação da Constituição, em 1988, que equiparou os filhos, em todos os seus direitos – sejam de convivência, de pensão alimentícia, de sucessão igualitária –, não importando se naturais, adotivos, havidos fora do casamento etc.
Acolhimento e abandono
Hoje falamos muito em “filhos do coração”. São aqueles ligados aos pais por laços afetivos, independentemente de qualquer vínculo sanguíneo. A adoção é uma escolha afetiva.
Nesse campo, surgem impasses angustiantes, quando, por exemplo, casais que realizam a chamada “adoção à brasileira” podem depois perder a criança. Essa forma de adoção é considerada crime: para evitar a fila de espera e burlar o procedimento de adoção, registra-se uma criança como se fosse naturalmente sua (falsidade ideológica, imputável com pena de prisão). Anos depois, estabelecidos todos os laços afetivos de convivência e amor, vem a mãe biológica, muitas vezes arrependida, reivindicar a criança de volta. Em casos como esse, não existe consenso nos tribunais, pois evidentemente a matéria de prova deve ser robusta e muito bem produzida, para que realmente se comprove, ou não, a existência de forte vínculo afetivo da criança com a família substituta, e se seriam nefastas as conseqüências de eventual entrega à mãe natural.
Parte da jurisprudência brasileira tem se preocupado bastante, da mesma forma, com o chamado “abandono moral”. São casos em que o processo objetiva a condenação de um dos genitores em indenizar a criança ou adolescente por danos morais, por falta de afeto. Discute-se, nesses casos, se está violado o constitucional Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, e se a dor sofrida por um filho em virtude do abandono paterno ou materno seria indenizável. E se a indenização seria punitiva ou pedagógica. Analisa-se o grau de sofrimento do menor que foi privado, por quem o ‘rejeitou’ – ou pela frieza –, do direito à convivência, do amparo afetivo, moral e psíquico, que pode levá-lo às drogas, à violência.
Não basta receber pensão alimentícia. A criança quer receber carinho e reconhecimento como filho. Mas a matéria ainda é considerada controvertida, pois, pergunta-se: é possível trocar afeto por dinheiro? Indenizar significa começar a amar?
Direitos afetivos
Outra demonstração de reconhecimento do princípio da afetividade nos tribunais brasileiros é a aceitação, cada vez maior, das uniões homoafetivas. Afinal de contas, é de ser reconhecida judicialmente uma união entre pessoas do mesmo sexo (mesmo sem previsão legal explícita) mantida de forma pública, duradoura, contínua, ininterrupta. Trata-se de um fato social, de uma relação de afeto sólida e permanente, que assume feição de família, com laços de amor. Marginalizar essas relações seria privar o direito à vida, além de violar o princípio da igualdade, garantido pela Constituição. Na ausência de legislação específica, interpreta-se o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, os costumes e a analogia para se preencherem as lacunas da lei. Uma vez que a lei não expressa essas possibilidades, mas não as proíbe.
O vínculo afetivo e familiar estabelecido pela criança ou adolescente com o padrasto ou madrasta, também, recebeu amparo legislativo recentemente, através da Lei 11.924/2.009. Dessa forma, enteados já podem adotar o sobrenome do padrasto ou madrasta, desde que tenham a aprovação expressa destes.
Há casos concretos de disputas jurídicas nos quais a paternidade genética e a socioafetiva encontram-se dissociadas. A criança vive e foi criada por casal que não os seus pais naturais, os quais, por sua vez, recorrem a Ação de Investigação de Paternidade. Muitas vezes, mesmo com exame de DNA positivo, prevalecem os interesses dos pais socioafetivos, por melhor acolher o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, bem como o também constitucional Princípio da Convivência Familiar.
Em última análise, o vínculo biológico não pode e não deve ser analisado isoladamente. O que alimenta a relação do genitor com o filho é o cotidiano, a criação, a educação, a transferência de princípios e valores, além do estabelecimento de laços de afeto. É isso que vai ocupar o espaço maternal ou paternal da criança. Negar afeto é infringir a lei. Ter um filho pressupõe prestar alimentos a ele, mas não só ao corpo. À alma também.